Introdução
Dormir bem não é luxo é tratamento. Na terceira idade, o sono reparador protege memória, humor, coração, imunidade e equilíbrio. Quando o idoso dorme mal, vejo na prática: mais esquecimentos, mais irritabilidade, mais quedas, mais dores e pior controle de doenças crônicas. Cuidar do sono é cuidar da autonomia.
O que muda no sono com o envelhecimento?
Algumas mudanças são esperadas outras não e precisam de avaliação.
- Arquitetura do sono: menos sono profundo (N3), mais despertares noturnos.
- Ritmo circadiano: tendência a adormecer e acordar mais cedo (“cronotipo matutino”).
- Homeostase do sono: maior sensibilidade a ruídos, luz, temperatura e dor.
- Comorbidades e medicações: dor, noctúria, doenças pulmonares/cardiovasculares, antidepressivos, benzodiazepínicos e diuréticos influenciam muito.
Mudança “esperada” não significa “aceitável”. Se o sono piorou e a qualidade de vida caiu, investigamos.
Distúrbios do sono mais comuns na terceira idade
- Insônia (dificuldade para iniciar/manter o sono) — frequentemente multifatorial: dor, ansiedade, maus hábitos, medicações.
- Apneia obstrutiva do sono (ronco, pausas respiratórias, sonolência diurna) — associada a hipertensão, arritmias, AVC e declínio cognitivo.
- Síndrome das pernas inquietas (desconforto noturno, necessidade de mover as pernas) — piora com deficiência de ferro e alguns fármacos.
- Transtorno comportamental do sono REM (movimentos e vocalizações durante sonhos) — importante marcador para doenças neurodegenerativas; merece atenção.
- Ritmo sono-vigília irregular (cochilos longos ao dia + despertares noturnos) — comum em demência.
- Noctúria (levantar para urinar) — checar próstata, diuréticos à noite, diabetes, insuficiência cardíaca.
Sinais de alerta que pedem consulta
- Quedas frequentes, confusão matinal, sonolência excessiva diurna.
- Ronco alto com pausas respiratórias, dor de cabeça matinal, pressão difícil de controlar.
- Comportamentos anormais durante o sono (gritos, chutes, “encenar” sonhos).
- Insônia com impacto funcional (humor, memória, equilíbrio).
- Uso crônico de “calmantes” para dormir.
Como abordo o sono no consultório (plano prático)
1) Anamnese detalhada + diário do sono (2 semanas).
2) Revisão de medicações (polifarmácia): reduzir sedativos, ajustar diuréticos para o período da manhã/tarde, avaliar antidepressivos/antihipertensivos que pioram o sono.
3) Tratamento da causa de base: dor crônica, ansiedade/depressão, noctúria, refluxo, DPOC, insuficiência cardíaca.
4) Educação e rotina personalizada (higiene do sono) — ver checklist abaixo.
5) Terapias de primeira linha:
- CBT-I (Terapia Cognitivo-Comportamental para Insônia): comprovação robusta, inclusive em idosos.
- Fototerapia (luz matinal) para ajustar ritmo circadiano.
- Exercício físico (força + aeróbico), preferir manhã/tarde.
6) Exames quando indicados: polissonografia para apneia/REM behavior disorder, ferritina para pernas inquietas, avaliação urológica/nefrológica para noctúria.
7) Fármacos: uso criterioso e temporário. Evito benzodiazepínicos e Z-drugs de rotina em idosos por riscos de quedas e confusão.
Higiene do sono: checklist que funciona
- Luz certa na hora certa: luz natural pela manhã; à noite, ambiente escuro e telas longe.
- Ritual fixo: horário regular para deitar/levantar, inclusive fins de semana.
- Cama = dormir: evitar TV/celular na cama; se não dormir em 20–30 min, levantar, relaxar e voltar com sono.
- Cafeína/álcool: evite após o início da tarde; álcool fragmenta o sono.
- Temperatura e conforto: quarto arejado, silencioso, colchão adequado, roupa leve.
- Exercício diário (30–45 min), longe do horário de dormir.
- Cochilos curtos: se necessários, até 20–30 min, antes das 15h.
- Jantar leve e precoce; atenção a refluxo.
- Dor controlada antes de deitar (posicionamento, analgesia orientada).
Sono, memória e risco de demência
Sono ruim crônico acelera inflamação, piora depuração de metabólitos cerebrais e está ligado a declínio cognitivo. Em demência, ajustar sono reduz agitação noturna, melhora o dia seguinte e alivia a sobrecarga do cuidador. Em apneia, tratar com CPAP melhora pressão, humor e pode proteger cognição.
Para cuidadores: o que ajuda muito
- Rotina previsível (refeições, luz solar, atividade física leve).
- Sinais de cansaço: não esperar “estourar”; conduzir para o ritual de dormir.
- Ambiente seguro (grades, tapetes fixos, luz guia).
- Evitar superestimulação noturna (visitas longas, notícias, telas).
- Cuidar de quem cuida: pausas, sono próprio, rede de apoio.
Guia rápido de decisões (mini-algoritmo)
- Insônia nova → revisar dor, medicações, cafeína, estresse; iniciar higiene do sono + CBT-I.
- Ronco/sonolência → suspeita de apneia → polissonografia.
- Movimentos/“encenar sonhos” → considerar transtorno do sono REM → polissonografia e acompanhamento neurológico.
- Noctúria → ajustar diuréticos, investigar bexiga/próstata/ICC/DM; limitar líquidos à noite.
- Pernas inquietas → dosar ferritina; revisar fármacos gatilho; orientar higiene do sono.
Perguntas frequentes (FAQ)
Idoso “dorme cedo e acorda cedo”: é normal?
Tendência comum. Se não há prejuízo diurno, podemos apenas ajustar luz (mais luz matinal, menos à noite).
Cochilar à tarde faz mal?
Cochilos curtos (20–30 min, início da tarde) podem ajudar. Evitar cochilos longos/tardios.
Melatonina ajuda?
Pode ajudar em mudança de fase e latência do sono. Uso individualizado, doses baixas e por tempo limitado.
Calmantes para dormir?
Na geriatria, evito de rotina: aumentam risco de quedas, confusão e dependência. Prefiro CBT-I e medidas comportamentais.
Quando procurar avaliação especializada?
Se o sono ruim dura > 4 semanas, há ronco/pausas, movimentos anormais à noite, quedas, sonolência diurna ou impacto na memória/humor.
Modelo simples de diário do sono (7–14 dias)
- Hora de deitar / adormecer / despertares / levantar.
- Cochilos (horário/duração).
- Cafeína/álcool/medicações.
- Nível de dor (0–10).
- Qualidade do sono (0–10).
- Levo esse diário para ajustar o plano.
Conclusão
Na terceira idade, cada hora de sono bem dormida vale autonomia. Tratar dor, ajustar remédios, organizar rotina e, quando preciso, investigar com exames muda completamente o dia a dia. Sono de qualidade é investimento em memória, humor, coração e segurança.